quarta-feira, janeiro 20, 2010

UM SAPATO NA ENXURRADA...

Dia desses, lá em Sampa, meu filho e eu saímos de seu apartamento e fomos até uma pizzaria. Sete e meia da noite, ainda claro, a chuva nos pegou no meio do caminho e nos abrigamos sob a marquise de um prédio.


Gentes, vocês já tiveram oportunidade de ficar contemplando a enxurrada passar? Pois foi o que ficamos fazendo. Vocês não imaginam como isso é útil e como ajuda a “matar” o tempo! Carregados pela água, em direção aos bueiros mais próximos, passam muitas e inusitadas coisas. Tocos de cigarros, papéis, papeizinhos, papelões, caixas de papelão se desfazendo com a chuva, latinhas de refrigerantes e de cervejas, plásticos de todos os tipos e tamanhos, inclusive as famosas pets de 2 litros, sacos de lixo (com lixo dentro), um sapato, mais latinh... Opa...Um sapato? Sozinho? E o outro pé? Muito mais coisa passou pela nossa frente, principalmente sacos de lixo com lixo dentro, sacos de lixo sem lixo dentro, lixo desacompanhado do respectivo saco de lixo... Mas o outro pé de sapato não veio.


Daí, fica-se pensando: por que, na enxurrada, passaria um pé de sapato rumo ao mais próximo bueiro? As hipóteses são muitas: um mendigo que o perdeu, alguém que, correndo da chuva, se desequilibrou e o sapato (era sapato de homem) voou longe, para o meio da enxurrada, a enxurrada teria invadido uma sapataria e arrastou um pé de sapato sem que ninguém percebesse, o sapato era a casa de liliputianos e estava ancorado em local de risco, o sapato era uma astronave de um planeta longínquo... Enfim, muitas hipóteses. Eu optei pela hipótese do Gerobaldo, como a mais plausível. Vocês não sabem quem é o Gerobaldo? Eu conto. Mas, a história é muito triste.


Gerobaldo era um rapaz que morava com a madrasta viúva, mulher impiedosa e que maltratava demais o pobre Gerobaldo. Ao contrário, para os dois filhos dela eram só carinhos, elogios, mimos, etc. Eles, verdadeiramente imprestáveis, não faziam nada o dia interinho. Gerobaldo, entretanto, era o encarregado de todos os serviços chatos e pesados da casa (a viúva não gostava de fazer trabalhos caseiros), como trocar lâmpadas, levar o cachorro para fazer necessidades na rua, varrer todo o chão, fazer as camas, lavar os pratos, etc. etc. Até enxugar o banheiro, depois que seus inúteis irmãos de criação tinham tomado seus banhos, era Gerobaldo que fazia. Coisa de louco!


Um dia, porém, Arquimedes Ourosilva, um rico banqueiro do jogo de bicho que morava lá pros lados do Morumbi, resolveu fazer uma festa para a linda filhinha que ele tinha e que ele queria que ela se casasse e parasse de reclamar dos presentes e tudo o mais que ele comprava para ela. O convite chegou à cidade toda. Todos os mancebos se entusiasmaram. E quem não se entusiasmaria de casar-se com a linda Anamaria Ourosilva e mais a rica mesada que papai lhe daria todos os meses? Sem contar que, qualquer hora, podiam “apagar” o bicheiro Arquimedes e ela, filha única, herdaria toda a sua fortuna.


Os irmãos de Gerobaldo, como todos na metrópole, se entusiasmaram. Mamãe Petúnia lhes comprou das mais lindas roupas expostas nas lojas do Bom Retiro, sapatos novos, etc. Para o Gerobaldo, coitado, nada! Mas, que esperança de casamento poderia ter aquele enjeitado que só entendia de vassouras e detergentes de lavar pratos? E, assim, o pobre coitado, lá no seu canto, apenas sonhava em ser o escolhido, pois não tinha roupas e nem imaginava onde ficava o Morumbi.


Vocês já viram uma estória parecida, não é mesmo? E até já adivinharam o andamento, não é mesmo? Pois foi assim. O Gerobaldo também tinha um fado madrinho, melhor dizendo: um fado padrinho, um camundongo chamado Perlamordogod, que, vendo o raparigo tão triste, se comoveu e lhe perguntou o que estava acontecendo. Sabendo do caso, o fado disse ao Gerobaldo que se acalmasse, pois iria à festa.


E foi assim. No dia da festa, Perlamordogod e sua varinha mágica (na verdade, um canudinho de refrigerante) fizeram milagres. Gerobaldo foi banhado, perfumado, teve o cabelo aparado, a barba ajeitada para que parecesse um presidente da república, vestido com esmero em um belíssimo “smoking”, e calçado num lindo par de sapatos “carrapeta” preto e branco. Também, não se podia esperar mais, não é? Perlamordogod não era, assim, bem informado em relação a modas masculinas. Mas, o Gerobaldo ficou, por assim dizer, “uma graça!”

Foi nessa hora que se depararam com o problema: como é que o Gerobaldo iria à festa naqueles trajes? Seria assaltado antes de chegar à primeira esquina, coitado. Porém, mago que é mesmo bom sempre tem uma solução.


No canto do quarto de Gerobaldo jazia um coco vazio (Gerobaldo o havia comprado com uma moeda de R$1,00 que encontrara, numa dessas lojas de saldos de lojas de R$1,99). Tomando do coco vazio, Perlamordogod o transformou em uma Ferrari vermelha, novinha, equipada com piloto automático (Gerobaldo não sabia dirigir). E, assim, lá se foi Gerobaldo, todo elegante, com sua Ferrari vermelha, para a festa na casa da Anamaria. Antes de sair, entretanto, Gerobaldo foi advertido pelo mago: “Antes da meia noite, saia da festa porque estou com minha carteira de habilitação vencida e a Ferrari pode voltar a ser coco.”


Nem preciso dizer que foi um sucesso, não é mesmo? Imaginem, aquele cara vestido de pingüim elegante, chegando naquela Ferrari... Todas as moças botaram seus cúpidos olhos em Gerobaldo. Anamaria, que até aquele momento não se interessara por nenhum rapaz, tremeu nas bases. De tanta emoção, até fez xixi na... Bem, vocês sabem! E foi lá falar com ele, depois de trocar a... vocês sabem:


“E aí, cara! Ta se divertindo? Vam ficá?” E ficaram! Lá, num canto escuro, Anamaria começou a iniciar Gerobaldo nos segredos do amor. E olha que ele era bom aluno!


Porém, tudo que começa bem, chega uma hora que tem que acabar. O relógio-carrilhão, lá da sala, começou a soar as badaladas da meia noite. Gerobaldo, assustado, levantou-se da cama da moça, agarrou suas coisas (roupas, sapatos), desceu as escadas do mesmo jeito em que Adão viera, sem nada, correndo em direção à Ferrari. Porém, na sua desenfreada correria e sem que percebesse, um sapato caiu no chão e lá ficou.


Anamaria, depois de recompor suas vestes, saiu atrás do rapaz, do qual ela nem sabia o nome, mas, só encontrou um coco vazio estacionado bem na frente de sua casa. Ao entrar em casa, porém, que maravilha, avistou o pé de sapato do Gerobaldo.


“Nem que eu tenha de correr São Paulo inteira, hei de encontrar esse cara!”


A mãe estava desesperada:


“Verifiquem as pratarias e cristais. Vejam se não falta nada!”


O senhor Arquimedes Ourosilva, mais prático, dizia:


“Eu não devia servir uísque vindo do Paraguai. Dá cada ressaca!”


E foi assim que, no dia seguinte, Anamaria e seu sapato... seu, não, o sapato do fugitivo, saiu pela cidade toda testando-o em tudo que era cara que lhe passasse pela frente. E chegou à casa de Gerobaldo. Nessas alturas, todas as TVs já haviam anunciado o que acontecera e todas as mães torciam para que o sapato servisse em seu filhinho. Mas, não havia jeito de encontrar. É que Gerobaldo tinha uma particularidade. Seu pé esquerdo estava no lugar do pé direito, e vice-versa. Assim, aquele pé esquerdo de sapato que deveria ser usado por alguém que tinha o seu pé esquerdo do lado direito, não servia para quem tivesse o pé esquerdo normalmente do lado esquerdo, vocês me entenderam? Não faz mal! O importante é que o sapato não servia em ninguém.


E, de rua em rua e de casa em casa, Anamaria chegou à casa da viúva Petúnia, que, imediatamente, chamou seus filhos, Caio e Levanto, para virem experimentar o famoso sapato. Diga-se, de passagem, nessas alturas o tal sapato já fedia depois de tanta gente o haver experimentado. É óbvio que não serviu em nenhum dos dois. Afinal, ambos tinham seus pés esquerdos fixados nas respectivas pernas esquerdas, e não seus pés esquerdos fixados em suas respectivas pernas direitas.


Anamaria já ia saindo quando, de repente, avistou Gerobaldo passando aspirador de pó na sala. Imediatamente, chamou-o para que experimentasse o sapato.


Madrasta Petúnia protestou:


“Não! Nesse imprestável, não! Certamente o sapato não servirá nele.” Porém, Anamaria era uma menina muito determinada e, sob protestos de Petúnia, de Caio e de Levanto, experimentou o sapato em Gerobaldo.


“Oh, serviu!”, disse ela com sua vozinha de piranha domesticada.


“Oh, serviu!”, disseram viúva Petúnia e seus filhos Caio e Levanto, já pensando em como tirariam proveito da situação.


“Vamos, querido”, disse Anamaria a Gerobaldo, “Vamos para minha casa, para nos casarmos e vivermos felizes, enquanto papai não for preso e não interromper a mesada.”


“Sim!”, disseram em coro, melosamente, Petúnia, Caio e Levanto. “Vamos para sua casa assistir ao casamento. Quem sabe lá tem uma edícula jeitosa, no fundo, e possamos morar lá, felizes, enquanto seu pai não for preso e não interromper a mesada.”


E foram todos saindo. Nessa altura, começara a chover. Anamaria parou, olhou bem para a sogra, olhou bem para os dois cunhados, olhou bem para o Gerobaldo, coçou um pouquinho a cabeça... E tomou sua decisão.


“Eu, hein!”


Jogou o sapato na sarjeta, justo no momento em que a enxurrada começava, entrou em seu carro e se mandou.


E largou todo mundo ali na chuva, se molhando: megera Petúnia, Caio, Levanto e Gerobaldo.


- - - - -


Essa foi a mais lógica explicação que encontrei para aquele pé de sapato solteiro sendo carregado pela enxurrada.


Será que vocês encontram explicação melhor?

- - - - -

NOVO BLOG NA BLOGOSFERA

Meu amigo Toninho Melchiori, interiorano com muitos "causos" para contar, montou seu blog. São crônicas muito interessantes. Merece ser visto. É o blog "Causos e Poesias", que já consta na minha relação de links. Vale a pena dar uma conferida. http://causosepoesias.blogspot.com/

- - - - -
Abração a todos,
JF

12 comentários:

maith disse...

Que conto delicioso! Você podia ter participado do "Execicio Criativo" ( se interessar eu conto os detalhes) O tema da ultima quinzena foi um conto que lembrasse algum conto classico da literatura. Olhe, amigo, não teve nenhum conto tão bom como o seu. E olhe que a turma lá não é brincadeira! Parabens! Em tempo: Você não gostaria de participar conosco?
Estou ouvindo o jogo do São Paulo. Vê se torce direito para o nosso time endireitar.
Está omeçando o 2o. tempo. Tchau!

Rosamaria disse...

hahaha
Amei teu conto, JF! Muito criativo!
Bom domingo!
Bjim.

DILERMArtins disse...

Mas bah, JF
Muito criativo, parabéns.
Concordo com você prefico finais interrompidos do que finais felizes...

Maria Helena disse...

JF
É bom demaiiiisss os seus "causos",
inteligente, perspicaz, lúdico. É muito bom passar por aqui.
Abraços.

Blog do Beagle disse...

kakakakakakaka só você mesmo! kakakakakak como é que posso pensar noutra explicação para aquele sapato a boiar na enxurrada????? Bjssss Elza

Adenium - Rosa do Deserto disse...

Meu amigo JF, quando vc começou a escrever e falar no sapato na enxurrada, meus pensamentos viajaram e pensei que depois do sapato viesse um corpo. Menos trágico! A maneira como escreve é agradável, dá gosto ouvi-lo. Digo ouvi-lo porque é como se eu estivesse aí, pertinho, sentado a sua frente escutando e dando aquela risada. Parabéns! Abs, Vera

Luma Rosa disse...

Ah, poxa! Achei que neste história de Cinderelo, também teria final feliz!!

Olhar enxurrada nos dias atuais não é igual ao passado quando fazíamos barquinhos :(

Beijus,

Claudinha ੴ disse...

Meu Deus, ops, meugod! Só mesmo o meu amigo JF para ter esta imaginação para um fato que normalmente estressa quem o vive!
Tenho visto as notícias e pensado nas vítimas destas enchentes. Que coisa gente! Muito triste! Mas você é sábio, achou logo um cinderelo brasileiro, o final também é bem brasileiro! Adorei!
A minha teoria para o sapato?
Ah, ele pertence a algum político que preferiu socorrer o dinheiro das meias e a perder um pé de sapato... (Mas acho a sua explicação muito mais legal!)
Beijão!

Luciana L V Farias disse...

Por essas e outras que eu adorava quando você me contava essas historinhas, quando pequena...

Unknown disse...

Sapato não é nada! E um amigo meu que ficou preso no meio da água (o carro literalmente afogou!) e foi ultrapassado por um sofá? Isso, um sofá! Só em SP mesmo! rsrsrs
Obrigada por passar lá no blog! :D

Anônimo disse...

Caro JF, adorei o conto, leve, inteligente e sagaz. Dá gosto ler. Andei lendo outros posts e já deu pra notar que criatividade é com você mesmo. Parabéns! Estou a-do-ran-do. Quanto ao final, depois que li o que você escreveu, não consigo mais pensar em nada. Tem que ser assim mesmo!
Obrigada pela visita no meu blog, volte mais vezes, conto com seus comentários. Tenha a certeza que estarei por aqui, serei sua seguidora. Um beijo grande.

maith disse...

Oi! Você sumiu! Passo rapidamente só para lembrar que daqui a pouco tem jogo e nós precisamos torcer pelo nosso time que anda muito ruinzinho. Um beijo pra Nina e pra Lu e pras netas!